Vários produtos lácteos modificados para burlar a pobreza

Você reparou que apareceu um novo Leite Moça no mercado?

A embalagem é marrom e traz mudança nos ingredientes.

O que está por trás dessas mudanças? Como essa alteração pode afetar o bolso, a saúde e a culinária?

E como ter certeza de que você não está comprando gato por lebre?

Vamos direto à primeira questão: quais produtos lácteos foram alterados?

A lista é bem grande. No lugar do leite e do iogurte, apareceram as bebidas lácteas.

Em vez de leite condensado, é possível encontrar agora a mistura láctea condensada de leite, soro de leite e amido. Já o creme de leite virou mistura de leite, soro de leite, creme de leite e gordura vegetal.

A lista continua:

Queijo ralado por mistura alimentícia de queijo ralado, leite em pó por pó para preparo de bebida sabor leite, requeijão cremoso por mistura de requeijão e amido ou mistura láctea sabor requeijão, manteiga por alimento à base de manteiga e creme vegetal e até o doce leite virou, em alguns casos, doce de soro de leite sabor doce de leite.

Ah, importante: muitos desses produtos já existiam no mercado

A questão apontada pelos especialistas é que eles se tornaram mais comuns nos últimos meses e ganharam mais espaço nas prateleiras, competindo ou até substituindo os produtos tradicionais.

Mas aí vem a segunda pergunta: o que está por trás dessa mudança?

A pesquisadora Kennya Beatriz Siqueira, da Embrapa Gado de Leite, explicou que as movimentações recentes da indústria dos produtos lácteos têm a ver com a crise financeira, a inflação e a escassez de matéria-prima no mercado.

O custo de produção do leite aumentou 62% nos últimos dois anos.

O preço da ração que alimenta as vacas, da energia elétrica que mantém o funcionamento dos currais e do próprio combustível que transporta o leite subiram consideravelmente.

Segundo Kennya, isso fez com que parte dos produtores se desfizesse do rebanho.

Para completar, os meses de maio, junho e julho são o período de entressafra no Brasil, já que o clima frio e o tempo seco prejudicam os pastos, o que faz as vacas não produzirem tanto leite assim.

Isso tudo, aliás, ajuda a entender por que esse alimento se tornou um dos vilões da inflação neste ano.

O leite longa vida acumula uma alta de 57% no IPCA em 2022. Outros lácteos também subiram. Só em julho/2022, houve um aumento de 19% no leite condensado, 17% na manteiga, 16% no queijo e 14% no requeijão.

Nesse cenário, a indústria resolveu apostar em novas formulações que substituem parte do leite.

Uma porção, então, foi trocada pelo soro do leite, um composto que “sobra” e antigamente era descartado durante a fabricação de queijos.

Para ter uma noção, a produção de um quilo de queijo gera cerca de oito litros de soro, em média.

E vale destacar que esse soro, apesar de trazer menos nutrientes, não faz mal à saúde. O nutricionista Rafael Claro, da Federal de Minas Gerais, explicou que o soro tem uma base sólida muito menor do que o leite essencialmente, ele é água, com um teor menor de proteínas e carboidratos.

E isso mudaria a composição do produto final para algo pior do ponto de vista nutricional.

Mas tem mais: para garantir que o produto “alternativo” fique mais parecido com o original, as empresas acrescentam em leites condensados, requeijões e bebidas lácteas no geral alguns ingredientes complementares, que dão consistência e sabor, como amido, gordura vegetal e açúcar.

Em alguns casos, as empresas acrescentam ainda outros compostos químicos, como emulsificantes, adoçantes e aromatizantes.

Terceira questão: isso representa ao bolso, ao preparo de alimentos e à saúde?

Da parte financeira, consumidores e especialistas dizem que a diferença de preços entre os produtos tradicionais e os modificados nem é tão grande assim. Muitas vezes, é de apenas alguns centavos.

Do ponto de vista culinário, esses produtos podem interferir no resultado final de uma receita.

A nutricionista Carolina Grehs, que criou o aplicativo Desrotulando, conta que algumas misturas lácteas geram problemas em receitas que dependem da gordura para sua estrutura. O brigadeiro, por exemplo, pode não chegar ao ponto ideal, quando ele começa a se desgrudar do fundo da panela, enquanto o pudim não ganharia aquela consistência típica.

Mas e do ponto de vista da saúde?

A nutricionista Laís Amaral, do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, avalia que o produto vai ter menos proteínas e vitaminas, o que representa um prejuízo na alimentação.

Alguns produtos também podem ter acréscimo de açúcar. Isso num cenário em que a obesidade só aumenta no Brasil. É bom prestar atenção ainda em compostos que terminam com “ante” neles, como os corantes,

os emulsificantes, os adoçantes…

A Laís Amaral disse também que esses ingredientes barateiam a produção, fazem o alimento ser minimamente comestível e mudam a parte sensorial do produto.

Mas com isso, muitos desses itens se transformam em alimentos ultraprocessados.

Segundo o Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde, o consumo de alimentos ultraprocessados, que trazem muitos desses  ingredientes de nome complicado e não são encontrados facilmente na despensa ou na geladeira de nossas casas, deve ser evitado sempre que possível.

Ah, que fique claro: a venda desses lácteos modificados está regulamentada e é liberada por órgãos como a Anvisa e o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. O grande problema, para especialistas, é que vários têm uma embalagem muito similar à original, trazem no rótulo elementos que remetem ao leite — como vacas, pastos, tonéis e líquidos brancos — e são colocados nas mesmas prateleiras que os produtos tradicionais e isso, claro, pode confundir o consumidor

Em contato com as entidades que representam os setores de leite e de laticínios no Brasil, mas não recebemos nenhuma resposta.

Já a Nestlé, responsável pelo Leite Moça, enviou uma nota dizendo que a versão atualizada do leite condensado é “um novo produto da linha Moça que possui os mesmos ingredientes do Moça Tradicional, porém, em quantidades diferentes, com adição de soro de leite e amido” wles também disseram que “Trata-se de um produto de alta qualidade, sem gordura vegetal,

estabilizantes ou espessantes, e é uma opção no portfólio da marca para consumidores que buscam soluções com menor desembolso, sem abrir mão do resultado e da qualidade Nestlé”.

A última pergunta: como não comprar gato por lebre?

O nutricionista Rafael Claro entende que a solução óbvia é evitar o consumo desses alimentos ultraprocessados e preferir sempre produtos frescos, se possível, mas ele entende que essa é uma discussão que ultrapassa os limites da nutrição e envolve assistência social e políticas públicas — ainda mais num cenário de crise econômica e inflação em alta.

Do ponto de vista prático, a nutricionista Carolina Grehs orienta que os consumidores fiquem atentos ao nome técnico de cada produto, que aparece em letras menores na parte frontal do rótulo — é ali que você vai saber se está diante de um creme de leite ou de uma mistura de creme de leite, por exemplo.

Ela acrescenta que mesmo dentro das misturas lácteas é possível procurar opções melhores e mais saudáveis. Algumas só trazem soro de leite e amido, enquanto outras têm o acréscimo de açúcar e de aditivos químicos.

A dica é ler a lista de ingredientes. Se itens como “xarope de glicose”, “açúcar” ou “gordura vegetal” aparecem logo de cara, é bom ligar o sinal de alerta

Além disso, se a palavra ‘sabor’ está no rótulo, isso significa que há a adição

de aromatizantes para reforçar o paladar, como é o caso de opções como o ‘pó para preparo de bebida sabor leite’ ou a ‘bebida láctea sabor morango’.

Pra acabar, caso você se sinta lesado e enganado, é possível acionar órgãos de fiscalização, como o Procon, o site consumidor.gov.br ou o Observatório de Publicidade dos Alimentos.

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